Na noite de hoje (05 de maio), acontece mais uma edição do Met Gala, um dos principais eventos de moda, que é organizado pelo Metropolitan Museum of Art de Nova York. O tema deste ano, “Superfine: Tailoring Black Style”, parte da exposição do Metropolitan Museum sobre a história do dândi negro como uma figura de sofisticação, resistência e elaboração estética.
A escolha do “tailoring” (termo inglês que remete à arte da alfaiataria) é mais que uma decisão sobre moda: é um gesto político, uma evocação à memória, um modo de costurar o passado e o futuro da identidade negra.
E foi a partir dessa imagem do tecido sendo moldado com precisão e sensibilidade que me veio a ideia desta newsletter. Porque se o vestuário pode ser instrumento de afirmação e luta, o cinema também sempre foi uma ferramenta de costura narrativa. Mas aqui, ao contrário da seda, do linho ou do algodão, costura-se com imagens, com sons, com semiótica e com memórias.
Antes de seguir, uma pausa importante:
Essa não é uma edição qualquer da Cinestesia. Hoje escrevo a partir de um lugar que não é o meu. Sou um homem branco, e, por mais que me dedique ao estudo e à apreciação do cinema, não posso falar da experiência negra em primeira pessoa. Meu intuito com esse texto não é ocupar um espaço que não me pertence, mas reconhecer, amplificar e costurar, com todo cuidado e reverência necessários, uma história que precisa ser contada, lembrada, celebrada e, acima de tudo, respeitada.
Quero aproveitar para deixar um agradecimento MUITO especial ao querido Luiz Carlos Gonçalves por toda ajuda, revisão e comentários fundamentais para construção de um texto coerente e respeitoso aqui. E, claro, pela longa amizade e trocas únicas na vida!
O nascimento do cinema e o silenciamento dos corpos negros
Num resumo muito breve (e até um pouco reducionista), o cinema nasce no fim do século XIX, sobretudo nos EUA e na Europa (principalmente na França) em meio a um contexto de desenvolvimento tecnológico, experimentação científica e de efervescência cultural e social que, mesmo com estes avanços relacionados à ciência, medicina e filosofia, ainda assim mantinha raízes estruturais e institucionais racistas.
Por isso, não surpreende que, desde os primeiros frames, os corpos negros foram ou invisibilizados ou retratados sob o signo da servidão, do exótico ou do cômico.
Curiosamente, mesmo que a origem do cinema tenha como marco a primeira exibição pública de um filme em dezembro de 1895, pelos irmãos Lumiere, em Paris, em 1878 tivemos o que é considerado o primeiro filme de stop motion, chamado “The Horse in Motion”, do inglês Eadweard Muybridge, que capturava em uma sequência de imagens um jóquei, homem negro, cavalgando.
Inclusive, esse marco histórico, do jóquei negro, é parte central da trama de “Não! Não Olhe” (Nope), de Jordan Peele, filme que dialoga diretamente com toda a temática desta newsletter e é uma forte indicação que posso dar.
Bem, voltando ao passadão histórico…É quase inevitável traçar uma linha do tempo sobre o cinema negro e o retrato da população negra pelo cinema por um recorte com os Estados Unidos. O país centralizou boa parte da produção e distribuição de filmes pelo mundo nos primeiros 20 anos do século XX, tomando para si a posição de “front-runners” da sétima arte, com a produção europeia sofrendo com as guerras em seu território.
Em 1915, “O Nascimento de Uma Nação”, de D.W. Griffith, trouxe dois marcos para a história do cinema: o primeiro, relacionado a linguagem com a montagem paralela, e o segundo, com um dos retratos mais preconceituosos e racistas do audiovisual com atores brancos pintados de preto, ex-escravizados retratados como bárbaros e a Ku Klux Klan elevada à heroína nacional. Infelizmente, esse imaginário retratado seguiu sendo propagado por décadas.
Ao mesmo tempo, nomes como William D. Foster e Oscar Micheaux já se destacavam à época. Micheaux, em especial, é uma figura central: foi o primeiro cineasta negro a dirigir um longa-metragem nos EUA e construiu uma filmografia crítica e resiliente num tempo de segregação explícita.
Micheaux é um nome fundamental para a compreensão de como as estruturas da época impediam uma proliferação mais organizada e estruturada da produção negra. Não é atoa que os dois primeiros filmes de Micheaux, The Homesteader e Dentro de Nossas Portas, são tidos como obras perdidas.
Como Bell Hooks destaca no texto “Filmes de Micheaux: celebrando a negritude” (2019), o cineasta tinha um projeto de contar “histórias originais da vida negra”, que o consolidaram como um dos principais responsáveis pelo o que veio a ser denominado como os “Race Movies”, num contexto de segregação racial e social forte nos EUA dos anos 50.
Décadas depois, entre os anos 70 e 80, surge o movimento L.A. Rebellion, na Universidade da Califórnia (UCLA), com jovens cineastas negros que decidiram criar uma nova linguagem para contar suas próprias histórias. Entre eles, Charles Burnett e Julie Dash, principais nomes desse movimento, ajudaram a construir uma estética própria, enraizada na ancestralidade, na vivência e no orgulho negro em diversas produções.
Blaxploitation: entre potência e contradição
Em paralelo, nos anos 70, Hollywood - enquanto uma indústria interessada no oportunismo do dinheiro - descobriu que havia potencial na representação negra (um paralelo que nos faz pensar sobre o atual momento da chamada “woke culture” e do “woke cinema” em pauta).
O resultado foi o nascimento do Blaxploitation, com personagens como Shaft, Foxy Brown e Coffy ganhando as telas. Pela primeira vez, havia a retratação de protagonistas, heróis, detetives e justiceiros, negros e negras. Mas havia uma ambiguidade: por um lado, o movimento ofereceu representação e autoestima; por outro, caiu em armadilhas de estereótipos e hipersexualizações, com muitos dos filmes produzidos por homens brancos para explorar um novo nicho de mercado.
É necessário e justo apontar essa crítica ao contexto do Blaxploitation, mas é impossível apagar sua importância e impacto. Foi nessa janela de representação negra que outros cineastas e jovens negros se viram representados minimamente nas telas de cinema e passaram a acreditar, conforme vários já disseram em entrevistas diversas, na possibilidade de assumir posições neste universo e mercado.
O novo protagonismo negro no cinema dos EUA
Nos últimos 15 anos, a presença negra no cinema estadunidense tem ganhado profundidade, complexidade e, sobretudo, respaldo de mercado. Não se trata mais apenas de estar em cena, mas de ocupar bastidores, roteiros, direções, estúdios.
De todos os nomes envolvidos, um dos mais importantes e relevantes é o de Spike Lee. Foi em 1989 que ele lançou “Faça a Coisa Certa”, um filme genial que retrata relações maniqueístas entre as comunidades negra, latina, asiática e branca de uma Nova York gentrificada e marcada pela marginalização de grupos sociais nos EUA. Pautado na reprodução desses estereótipos tão comuns a Hollywood e ao cinema americano, Spike Lee cria uma obra afiada temáticamente e de uma execução cinematográfica impecável, traduzindo a tensão social em uma atmosfera quente e prestes a implosão.
Na sequência da carreira, ele se consolidou como um verdadeiro historiador da sociedade americana, da cultura negra e das relações sociopolíticas do país, sempre traduzindo suas visões e percepções através do cinema.
Enquanto Lee pavimentou um caminho de interseção entre um cinema de mais prestígio que ainda conversasse com o mainstream, Tyler Perry construiu seu próprio império com uma vasta filmografia de produções completamente voltadas para a audiência e o público negro. Navegando do humor arquetípico de esquetes e de exagero com a personagem “Madea”, até filmes de gênero bem eficientes que vão do suspense policial ao drama de época, Perry se tornou um dos diretores mais ricos de Hollywood e do cinema pelo sucesso de bilheteria ao nichar seus projetos para sua própria cultura e comunidade.
Ainda há outros nomes de peso na cena mainstream estadunidense como Ava DuVernay, Jordan Peele, Barry Jenkins e Ryan Coogler, que são responsáveis, individualmente, por filmes que são sucessos de bilheteria, donos de prestígio da audiência, sucessos de crítica e fenômenos culturais (“Selma, “A 13ª Emenda”, “Moonlight”, “Corra!”, “Nós”, “Creed, “Pantera Negra”, “Pecadores”).
O que temos hoje é um momento em que cineastas, roteiristas, atores e produtores negros passam a alcançar posições de tomadas de decisão, garantindo que narrativas de dentro para fora sejam trazidas à vida com controle criativo, autoria e muita identidade.
O cinema negro brasileiro: da invisibilidade ao protagonismo
No Brasil, o caminho do cinema negro é tão sinuoso quanto revelador. A forma como a população negra foi paradoxalmente retratada e ignorada ao longo da história do audiovisual brasileiro é um espelho profundo das estruturas racistas que ainda moldam a sociedade.
Durante décadas, os personagens negros ocuparam lugares cômicos, subalternos ou marginais. Raramente eram protagonistas. Quase nunca contavam suas próprias histórias. Com o surgimento do Cinema Novo na década de 1960, surgem as primeiras tentativas de discutir a questão racial de maneira mais política.
Filmes como Ganga Zumba (1964) e Quilombo (1984), ambos de Carlos Diegues, são marcos importantes por tratarem da resistência negra. No entanto, essas obras ainda eram realizadas sob o olhar do homem branco, o que, inevitavelmente, limita a profundidade estética, afetiva e sensorial da experiência negra ali representada.
Foi Zózimo Bulbul quem cunhou, com potência e clareza, a importância da construção de um cinema negro brasileiro. Diretor de Alma no Olho (1974), filme que pode ser considerado a obra inaugural do cinema negro no país, e do documentário Abolição (1988), Zózimo propôs, na prática e no discurso, uma estética da resistência e da autorrepresentação. Mas sua contribuição, por muito tempo, foi negligenciada.
Mesmo com a retomada do cinema nacional nos anos 1990, a diversidade étnico-racial seguiu invisibilizada. A hegemonia branca seguiu ditando regras, e a presença negra, tanto na frente quanto atrás das câmeras, foi escassa.
Foi nesse contexto que surgiram dois movimentos fundamentais: o Manifesto Dogma Feijoada (2000), liderado por Jeferson De, e o Manifesto do Recife (2001), ambos reivindicando mais espaço, visibilidade e protagonismo para realizadores e personagens negros no audiovisual brasileiro.
De lá para cá, os passos foram lentos, mas não silenciosos. Adélia Sampaio, primeira mulher negra a dirigir um longa no Brasil (Amor Maldito, 1984), abriu caminhos. E, mais recentemente, nomes como Joel Zito Araújo, Camila de Moraes, Viviane Ferreira, Gabriel Martins e André Novais Oliveira têm consolidado uma nova página na história do nosso cinema.
A Filmes de Plástico, produtora sediada em Contagem (MG), é hoje símbolo dessa virada. Com uma estética realista e autoral, obras como Temporada (2018) e Marte Um (2022) reposicionam a periferia negra brasileira como espaço de afeto, sonho e complexidade, rompendo com o clichê da violência como única lente de abordagem. É uma abordagem sutil e bonita que transforma a poesia do cotidiano e o gesto comum do dia a dia em ações políticas.
Filmes recentes como Mussum, o Filmis (2023), de Silvio Guindane, e o documentário Othelo, o Grande colocam foco em figuras históricas negras do nosso audiovisual, como Grande Otelo e Mussum, retirando-os do lugar da caricatura e os devolvendo à sua grandeza, com sensibilidade e justiça. Já Diálogos com Ruth de Souza, de Juliana Vicente, é um tributo à memória viva de uma das maiores atrizes da nossa história, narrado por ela mesma.
Esse renascimento do cinema negro no Brasil se dá em esferas artísticas e políticas que se fazem urgentes e necessárias. Obviamente, ainda há muito a ser feito: o acesso aos recursos de fomento, o rompimento com a lógica dos arquétipos coloniais, a presença de profissionais negros em todas as etapas da cadeia produtiva do audiovisual.
Mas se é possível encerrar esse texto com um olhar positivo, realista e esperançoso, é minimamente justo apontar que estamos testemunhando uma geração de cineastas e realizadores, no nosso contexto tupiniquim e no cinema mundo afora, que têm conseguido reivindicar suas próprias narrativas com autonomia, beleza e contundência.
Que a audiência (me incluindo nela) e a sociedade possam prestigiar, aprender e melhorar como seres humanos a partir da visão destes artistas.
100 filmes do cinema negro para você assistir
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