CINESTESIA #22 | Em defesa do cinema de rua.
Da memória afetiva à formação de público, as salas de cinema de rua são fundamentais para o fomento do cinema.
Esse papo vai ser mais pessoal do que nunca. Como pode o saudosismo e a nostalgia começarem a me atacar na iminência dos meus 29 anos. Sim, ainda sou jovem para ter os ataques nostálgicos típicos de parentes mais maduros e de falsos especialistas de qualquer assunto que, naturalmente, advogam que aquilo que amam “era melhor em outra época”.
Mesmo assim, é difícil de não perceber como o cinema, sobretudo o que gosto de me referir como “a experiência templária de ir ao cinema” segue enfrentando desafios nos gostos, interesses, demandas e comportamento de público, principalmente das novas gerações.
Enquanto as gerações Z e Alpha passam a mostrar um interesse por experiências táteis e imersivas - apesar da naturalidade e de um aparente vício nos smartphones e mídias sociais - o cinema, enquanto espaço de experiência cultural e social, segue lutando por um novo lugar ao sol em meio a consolidação e o contínuo crescimento do streaming.
Se há algo que os amantes do cinema podem concordar é que assistir a um filme em uma grande sala de exibição, cercado pelo público, faz parte de uma experiência única. No centro desse raciocínio reside quem mais sofre: os cinemas de rua. As salas de cinema menores, mais independentes, apoiadas por instituições culturais e mecenas da cultura que fomentam uma programação mais diversa e alternativa frente às exibições dos cinemas de shoppings.
Mas os cinemas de rua, que foram o coração da cinefilia no Brasil durante décadas, parecem cada vez mais parte de um passado distante. Ainda assim, algumas iniciativas e tendências recentes mostram que essa história pode estar longe de acabar.
Me recordo do passado (minhas memórias de ida ao Usiminas e ao ainda vivo Belas Artes de Belo Horizonte), enxergo o presente conturbado e reflito sobre os desafios do futuro para entender se os cinemas de rua ainda podem ter um papel relevante no cenário audiovisual brasileiro.
E você, topa fazer o mesmo?
Hoje, embora o Brasil tenha 3.481 salas de cinema em funcionamento, segundo dados da ANCINE de novembro de 2024, a maioria delas está concentrada dentro de shoppings, deixando poucos cinemas de rua operando de forma independente.
Naturalmente, o estado que tem mais telonas em operação é São Paulo, com 1,1 mil, seguido por Rio de Janeiro, com 378, e Minas Gerais, com 272. Os menores números foram registrados na região Norte —Amapá, com 15 salas, Roraima, com 13, e Acre, com 7.
Uma história de brilho e decadência
Entre as décadas de 1930 e 1960, os cinemas de rua eram a principal forma de acesso ao cinema no Brasil. Grandes salas como o Cine Odeon (RJ), o Cine Marabá (SP) e o Cinema São Luiz (PE) eram mais do que espaços de exibição — eram pontos de encontro, locais de celebração cultural e símbolos da modernização urbana.
O auge do setor veio nos anos 1950 e 1960, quando essas salas recebiam multidões para assistir a grandes clássicos e sucessos de bilheteria. Na época, ir ao cinema era um evento social, parte da vida cotidiana das cidades. As sessões lotadas reforçavam o impacto do cinema como uma experiência catártica e coletiva.
Mas a partir dos anos 1970, uma série de fatores começou a minar esse modelo. A popularização da televisão e, posteriormente, do videocassete, deu às pessoas uma alternativa para consumir filmes sem sair de casa.
Nos anos 1990, a expansão dos shopping centers e o surgimento das grandes redes de multiplexes mudaram completamente a lógica do mercado exibidor, reduzindo drasticamente a presença dos cinemas de rua e concentrando a experiência dentro dos centros comerciais.
O monopólio dos shoppings e seus efeitos
A ascensão dos shopping centers como epicentro da experiência cinematográfica no Brasil não foi apenas uma tendência natural — foi um fenômeno mercadológico avassalador.
Os cinemas de shopping trouxeram vantagens que, na época, eram difíceis de competir: segurança, estacionamento, infraestrutura moderna e uma variedade de opções de lazer, como lojas e restaurantes. Os multiplexes padronizaram a experiência cinematográfica, oferecendo salas menores e mais funcionais, o que permitiu maior flexibilidade na programação de filmes.
Mas essa centralização do cinema dentro dos shoppings também trouxe efeitos negativos para a diversidade do setor. O modelo dos multiplexes favorece a exibição de blockbusters e filmes de grandes estúdios, reduzindo a variedade de títulos e marginalizando produções independentes e autorais.
Além disso, a lógica comercial dos shoppings afasta o cinema da vida urbana espontânea. Antes, um passeio pelo centro da cidade poderia incluir uma visita inesperada a um cinema de rua.
Hoje, a ida ao cinema requer deslocamento até um shopping center, onde a experiência já está estruturada dentro de um modelo comercial fechado. O cinema se torna mais uma opção de consumo, junto de lojas e praça de alimentação.
Para muitos cinéfilos, o impacto dessa mudança não é apenas prático, mas também simbólico: os cinemas perderam o charme, a identidade e o vínculo com a cultura urbana local.
Resistência e reinvenção
Apesar desse cenário, alguns cinemas de rua conseguiram resistir e continuam operando, muitos deles reinventando sua proposta para atrair um público fiel. Seja o Cine Olympia (Belém, PA), o Cineteatro São Luiz (Fortaleza, CE), o Cine Marabá ou o Belas Artes (ambos de São Paulo, SP), todos alternam uma programação híbrida entre sucessos comerciais, filmes alternativos e pequenos “eventos” e mostras para fomentar público com propostas diferentes.
Se o renascimento do vinil e da fotografia analógica nos ensinou algo, é que a nostalgia pode ser um fator de mercado. Mas para que os cinemas de rua sobrevivam, precisarão oferecer mais do que apenas nostalgia — será necessário construir um modelo sustentável e atrativo para as novas gerações.
Seguir com o fomento de cineclubes, debates, exposições e eventos relacionados ao audiovisual é um caminho. Aproveitar o movimento dos "listening bars", que criaram espaços para ouvir vinis enquanto se aprecia um drink, os cinemas poderiam criar bares ou cafés temáticos, equilibrando a experiência de silêncio necessária para apreciar um bom filme (algo que a Cinesala, em São Paulo, consegue fazer).
Também de São Paulo, o Belas Artes é um dos exemplos mais bem-sucedidos desse modelo. O cinema soube se posicionar como um espaço de curadoria diferenciada, oferecendo desde festivais temáticos até exibições especiais que não podem ser encontradas nos multiplexes.
Ainda há público para os cinemas de rua?
A questão central é: será que as novas gerações, acostumadas com o streaming e a praticidade dos multiplexes, e até o público mais maduro, acostumado com o conforto e praticidade da experiência familiar completa no shopping, têm interesse nos cinemas de rua?
Para mim, no fim das contas, a questão não é apenas sobre o futuro dos cinemas de rua, mas sobre o que queremos do cinema enquanto experiência cultural.
A era digital nos deu acesso a um oceano de conteúdo, mas ao mesmo tempo, nos privou da dimensão coletiva e imersiva do cinema. As grandes telas, o som envolvente, a troca de olhares na plateia, a expectativa antes do filme começar — tudo isso é parte de algo que nenhuma plataforma de streaming pode reproduzir.
Os cinemas de rua podem não voltar a dominar o mercado, mas se souberem se reinventar, sempre haverá espaço para eles na vida daqueles que buscam algo além da tela do celular.
Para mim, um apaixonado pelo cinema de 29 anos de idade, resguardar as virtudes da experiência templária proporcionada pelo cinema será sempre um prazer e, porque não, uma missão.
E você? Tem lembranças de cinemas de rua na sua cidade? Ainda frequenta algum? Conta aqui nos comentários!
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Minha paixão pelo cinema passa pela interlocução com os filmes, a visão e olhar coloca da cada artista em cada projeto e, também, de toda pessoa que converso a respeito.
A CINESTESIA nasceu dessa vontade de conversar, trocar e compartilhar as minhas experiências com o outro (ou com você) – tudo com uma abordagem descontraída e pessoal.
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oie! Você também curte podcast? Aqui eu lanço episódios do meu podcast sobre cinema. Talvez você goste 🤎
Adorei essa revisão histórica dos cinemas de rua e sim ir ao cinema é uma outra experiencia, menos pratica mas infinitamente maior e mais intensa!
Vamos ao cinema !
De rua, quando houver…