Vivemos num mundo capitalista em que o trabalho faz cada vez mais parte da nossa vida, determinando horários, impactando sonhos e garantindo ou tirando a nossa liberdade.
É difícil escapar: ainda que desejemos defini-lo como fonte de realização ou propósito, para a maioria das pessoas ele se impõe como sobrevivência.
O cinema, essa arte popular que acompanhou os séculos XX e XXI e se entrelaçou à indústria cultural, é um agente importante da mediação das representações do que significa trabalhar no imaginário e na cultura popular contemporânea.
Em outras palavras, se o cinema foi a mais influente forma de narrativa de massa, o trabalho foi uma de suas matérias-primas. Não apenas como pano de fundo, mas como trama central, como espaço onde dramas íntimos e sociais se encenam.
E hoje, neste 1º de Maio, Dia do Trabalhador, é inevitável mergulharmos nessa relação fascinante, tensa, dolorosa e, muitas vezes, revolucionária.
Uma arte trabalhadora desde as origens
Entre 1910 e, sobretudo, na década de 20, o cinema soviético encontrou nas massas e nos operários a sua principal força dramática. Filmes como O Homem com a Câmera, de Dziga Vertov, e Encouraçado Potemkin, de Sergei Eisenstein, não apenas exultaram a força coletiva: contribuíram para o avanço da linguagem cinematográfica com os métodos de montagem soviética, estética revolucionária e foco na transformação social.
Enquanto isso, nos EUA, Charles Chaplin e Buster Keaton retratavam o trabalhador como engrenagem moída pela máquina industrial e pela alienação cotidiana. Em Tempos Modernos (1936), Chaplin equilibra comédia e melancolia na imagem do operário engolido por uma esteira de produção infinita. Keaton, por sua vez, transita entre o absurdo e a resignação, registrando a vulnerabilidade do homem frente à industrialização.
Apesar de serem filmes de linguagem mais direta, ainda muito teatral e dependente de uma comédia física muito presente, as obras de Chaplin e Keaton deram conta de capturar a percepção de como o trabalhador era símbolo da nova era e também da nova fragilidade humana.
As dores e distorções do trabalho no cinema
Mais do que o trabalho, a falta dele também é uma constante no cinema. O desemprego é constantemente retratado como mais do que a perda do salário, mas sim como uma perda de identidade, de utilidade e relevância enquanto individuo da sociedade.
Em Ladrões de Bicicleta (1948), vemos um homem desesperado pela chance de um emprego, cuja sobrevivência (e a humilhação social) depende de um objeto tão simples quanto uma bicicleta que lhe é roubada.
Em The Full Monty (1997), homens desempregados na Inglaterra industrializada apostam em um espetáculo de strip-tease como última tentativa de dignidade. Um contexto parecido com os filmes da franquia Magic Mike, que também aborda os EUA em crise econômica para dar vida a história de realização econômica através do mundo do male striper.
Em Eu, Daniel Blake (2016), do britânico Ken Loach, a burocracia cruel de um sistema assistencialista desumaniza o indivíduo, transformando a busca por auxílio em uma jornada kafkiana. Inclusive, Loach é um cineasta que sempre busca retratos crus e reais, muitas vezes com não atores, do contexto do desemprego no Reino Unido.
Outra representação muito comum é a alienação do trabalho, capaz de desconectar o ser humano de sua própria humanidade, é um dos temas mais universais do cinema. Em Tempos Modernos, a engrenagem devora o corpo. Em O Operário (2004), o trabalho repetitivo e a paranoia adoecem a mente, enquanto em Playtime (1967), Jacques Tati mostra a vida moderna como uma coreografia absurda de alienação e automatismos.
Quando a resistência se organiza, o trabalho vira luta política. É assim que a sindicalização é retratada em diversos filmes como Sindicato de Ladrões (1954), onde Marlon Brando interpreta um estivador que enfrenta a corrupção sindical e a máfia dos portos. Em Norma Rae (1979), Sally Field vive a operária que desafia o sistema ao tentar sindicalizar sua fábrica.
Eles Não Usam Black-Tie (1981) é talvez o filme brasileiro mais simbólico sobre as tensões entre luta coletiva e interesses individuais. Arábia (2017), de João Dumas e Affonso Uchôa, acompanhamos a experiência de tomada de consciência de um trabalhador brasileiro que já morreu, em uma espécie de investigação da própria vida à lá Memórias Póstumas de Brás Cubas - inclusive, um dos meus filmes brasileiros favoritos.
As utopias e distorções do trabalho
O cinema também sonha e alerta em projeções de futuros (e, porque não, de presentes) onde o trabalho é distorcido até se tornar opressão pura.
O histórico Metropolis (1927) de Fritz Lang criou a imagem definitiva do trabalhador como engrenagem literal da sociedade. Brazil - O Filme (1985) faz da burocracia um pesadelo surrealista. Blade Runner (1982) questiona a própria definição de "humano" e "trabalho" num mundo de replicantes.
E Sorry to Bother You (2018), Boots Riley satiriza com humor ácido o capitalismo tardio, num futuro tão absurdo quanto reconhecível.
Hollywood: terra de oportunidades (e ilusões)
Uma parcela muito interessante do recorte entre cinema e trabalho recai sobre Hollywood porque o cinema tomou pra si o posto de principal expressão artística da contemporaneidade em um período em que os Estados Unidos não só se consolidou como a potência mundial econômica e política, mas também como tenta (e se tentando) se solidificar na esfera cultural através do cinema em si.
Essa dinâmica não poderia criar outra expressão se não a dos valores liberais e neoliberais tão defendidos pelos estadunidenses em sua cultura, estilo de vida e constituição.
Assim, Hollywood construiu ao longo dos anos o mito do trabalho como redenção pessoal. É a terra da oportunidade para quem "se esforça o suficiente". O self-made man, o empreendedor visionário, o lutador solitário são arquétipos consagrados no cinema americano.
Citar produções aqui seria um exercício tão longo, quanto repetitivo, mas o curioso é que, num período onde os EUA parecem implodir em si mesmos em todos os aspectos sociais, políticos, econômicos e até culturais, é o cinema - tanto independente, quanto mainstream - tem balançado o pêndulo do retrato entre a venda da ilusão do sucesso através do trabalho no país e o confronto da realidade de um abismo de desilusão profundo.
O Brasil e o trabalho como drama e resistência
Falar do retrato do trabalho no cinema brasileiro é um exercício um tanto quanto mais profundo e alongado do que gostaria para essa newsletter. Em linhas gerais, acho válido pontuar como o nosso cinema retrata o trabalho de maneira crua e realista, profundamente ligada à luta de classes: um movimento natural em um país com a realidade econômica e social como a nossa.
Do retrato da migração forçada em busca do sustento como na adaptação de Vidas Secas (1963), à herança colonial ainda viva nas relações profissionais no nosso país como em Que Horas Ela Volta (2015), a produção brasileira, sobretudo o período denominado como Cinema da Retomada, tem um interesse latente em capturar o cotidiano sem perspectivas do trabalhador brasileiro, e colocando o labor, o rito de trabalho no seu valor de sobrevivência, de luta e de manutenção da dignidade.
Agora sim, um bom feriado para todos vocês (ou nós) trabalhadores!
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Que texto oportuno, repleto de bom conteúdo e boa reflexão… afiado!