CINESTESIA #04 |Os "filmes eventos" são a esperança do Cinema?
Em meio a crise criativa de Hollywood, anos ruins de bilheteria e a sombra do streaming, os estúdios tem tentado vender todo lançamento como um grande fenômeno. Tem dado certo?
Desde a pandemia da COVID-19, a indústria cinematográfica tem se esforçado para reconquistar o público nas salas de cinema. Entre a competição feroz com os streamings e os altos preços dos ingressos, o setor vem enfrentando desafios complexos.
Uma das estratégias mais marcantes adotadas pelas distribuidoras tem sido transformar lançamentos em "filmes-evento", promovidos como experiências únicas e indispensáveis. Mas será que essa abordagem está salvando o cinema ou criando expectativas frustrantes no público?

O surgimento do "filme-evento"
A narrativa do "filme-evento" ganhou força como resposta à crise pós pandemia. Produções como Tenet, os dois longas de Duna, Missão Impossível: Acerto de Contas Parte 1, filmes da Marvel como Doutor Estranho: No Multiverso da Loucura e Homem-Aranha: Sem Volta pra Casa ou Avatar 2: O Caminho da Água, foram lançadas com a promessa de "salvar o cinema", apelando ao retorno às salas como um ato messiânico.
Mesmo fora dos blockbusters tradicionais, estúdios como a A24 têm usado a narrativa do "o filme de terror do ano" ou “o filme mais assustador desde [complete com qualquer bom filme do gênero]” para atrair espectadores.
O maior caso de sucesso desse certo jogo de antecipação inflado se deu no fenômeno Barbieheimer, quando Barbie e Oppenheimer dividiram as atenções – e os ingressos – gerando uma arrecadação colossal de US$311 milhões nos EUA em um único fim de semana. O filme da boneca passou do bilhão e quase bateu o bilhão e meio de dólares mundialmente, enquanto a biopic do cientista criador da bomba atômica chegou a mais de 970 milhões de dólares.
Na expectativa de uma repetição deste movimento que, para além das salas de cinema tomou as redes sociais por assalto, a indústria tem forçado um embate entre duas estreias recentes: Gladiador II e Wicked, apelidados nas redes como Glicked.
O embate simbólico entre as narrativas de guerra romana e o musical da Broadway movimentou US$170 milhões em bilheteria na estreia, quase metade do que Barbieheimer conseguiu.
Até mesmo os lançamentos de filmes de diretores renomados como Assassinos da Lua das Flores de Martin Scorsese e Megalopolis de Francis Ford Coppola não conseguiram alcançar essa expectativa de mercado de “salvarem” o Cinema.
Uma experiência cada vez mais cara e restritiva
Apesar do hype gerado nas campanhas, essa lógica vem com custos.
O cinema tornou-se uma experiência cada vez mais cara, e a prática de encher as salas com poucos títulos de grande apelo limita a diversidade de opções. Isso prejudica a formação de um público mais diverso e reduz a oportunidade de sucesso para produções menores.
Ao invés de fomentar o amor pela arte cinematográfica, cria-se uma cultura de consumo que gira em torno de poucas grandes marcas.
Além disso, a expectativa construída em torno desses "filmes-evento" pode acabar sabotando a experiência do espectador. A promessa de assistir algo "arrebatador" muitas vezes transforma a ida ao cinema em uma busca por validação:
"Será que o filme é tudo isso que dizem?"
Esse olhar pré-condicionado interfere na experiência mais pura e artística que o cinema pode oferecer – de simplesmente sentar, assistir e construir sua própria opinião.
A grande questão é: o Cinema precisa mesmo de salvação?
Entendo a dificuldade e os desafios que o mercado tem enfrentado para atrair público para as salas em tempos de streaming e mudanças no comportamento da audiência.
Entretanto, um questionamento mais profundo e, acredito eu, mais correto vem de outro lugar: o Cinema realmente precisa ser salvo?
Acredito que o que estamos vivendo é mais um ciclo de adaptação de uma indústria que tem, desde o início, respondido a mudanças tecnológicas, culturais e sociais, desde o surgimento da expressão audiovisual.
Se não é a forma de arte mais importante dos séculos XX e XXI, o Cinema é com certeza a mais dominante e popularizada no nosso imaginário, tendo superado desafios gigantescos e se reinventando na sua pouca idade - vale lembrar, o Cinema não tem 150 anos de vida.
No fim das contas, talvez a salvação não esteja em grandes campanhas ou em competições inventadas, mas na pluralidade de histórias que pode contar.
Afinal, o poder do Cinema não está em ser um grande evento. Está, simplesmente, em ser Cinema.
ALGUÉM AINDA LÊ LIVROS?
Não vale ficar puto, é só piada…Eu mesmo não consigo trocar o bom e velho livro impresso pelo Kindle.
Aproveitando, para quem se interessa pela reflexão mais profunda e, porque não, por uma pesquisa histórica dos desafios do Cinema enquanto expressão artística e mídia, recomendo muito o livro O fim do cinema?: Uma mídia em crise na era digital, de André Gaudreault e Philippe Marion.
No livro os autores destacam "oito mortes" do Cinema ao longo da história, mostrando como a “sétima arte” é marcada por transformações que, a cada momento, pareciam representar o fim de sua trajetória. São elas:
Um meio de comunicação natimorto: Louis Lumière, um dos pais do cinema, certa vez afirmou que o cinema era “uma invenção sem futuro”. Sua visão mostrava o ceticismo inicial quanto ao potencial desse novo meio.
A morte de um modelo dominante de pré-cinema: No final da década de 1900, o cinema itinerante começou a perder espaço para salas fixas e dedicadas exclusivamente à exibição de filmes. Era o início da institucionalização do cinema.
A morte do cinematógrafo (1910)
A morte do cinema mudo (1930): o advento do som no Cinema
A presença massiva da televisão (1950): a televisão entrou nos lares, permitindo que o público assistisse a conteúdos audiovisuais em sua própria casa.
O surgimento do gravador de vídeo: Com o videocassete, o público ganhou a liberdade de escolher o que e quando assistir, sem precisar se prender à programação das salas ou canais de TV.
O domínio do controle remoto: Esse acessório, junto com o videocassete e a TV a cabo, deu ao público maior controle sobre sua experiência, aproximando o entretenimento audiovisual de um formato interativo.
A morte da película: A transição do cinema analógico para o digital revolucionou a produção e exibição de filmes. Apesar de ser um marco essencial para a indústria, para muitos espectadores comuns, foi uma mudança quase imperceptível em relação à experiência de assistir aos filmes.
Atualmente, poderíamos discutir a já existência de pelo menos uma 9ª morte com o advento das redes sociais e uma 10ª com a popularização do streaming. Mas, enquanto ainda vivemos o período de perceber essas mudanças no nosso dia a dia, deixo a pergunta para todos nós:
Como está a sua relação com o Cinema hoje em dia?
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